A Clareza do Centro: Coerência como Estratégia na Complexidade
Frequentemente, encaramos a Coerência apenas sob uma ótica ética, como uma virtude desejável. No entanto, ela é uma força muito mais estrutural e existencial. Na medida em que definimos nossa identidade, ou seja, valores, princípios, aquilo que é e não é importante para nós, criamos um poderoso centro de clareza, uma base sólida para a ação no mundo.
O primeiro impacto dessa clareza é um filtro de decisão que reduz o custo cognitivo das escolhas. Ele gera integridade, no sentido de nos mantermos inteiros, não fragmentados. Este filtro também nos ajuda a ganhar confiança interna, uma vez que agimos a partir do que é verdade para nós, e não necessariamente do que os outros querem extrair de você; além de nos ajudar a construir confiança externa, pois permite que os outros saibam o que esperar de nós.
Enquanto tudo a nossa volta muda e se move constantemente, agir com coerência é operar a partir de um centro imutável. Imagine a roda: enquanto a borda gira em alta velocidade, o eixo permanece estável. Pense no olho do furacão: um ponto de calmaria que organiza a tempestade. Agir a partir do centro nos permite navegar na volatilidade e relatividade de um mundo caótico sem sermos desintegrados por ele.
E o que é verdade para nós, indivíduos, se revela ainda mais poderoso para a organização. Afinal, nós também somos "organizados" em termos dos agentes internos (medos, desejos, hábitos) que atuam dentro de nós a partir de seus próprios interesses. A mesma estrutura fractal interna se derrama para fora e molda o que chamamos de "tecido social organizacional".
No livro “Gestão Sistêmica e Complexidade”, eu defino um sistema como um conjunto de componentes que interagem em busca de um propósito, criando uma identidade que se preserva ao longo do tempo.
“(...) É por haver essa identidade que se torna possível enxergar o sistema como uma entidade com dinâmica própria. O sistema é, assim, um estado configurativo, preservado por seus componentes enquanto eles se unem e interagem para lidar com uma situação.”
- pg 10
Aqui, o propósito é o elemento gerador de Coerência, a energia que mantém o sistema vivo. Um sistema luta constantemente contra a entropia (a tendência à desordem). A Coerência, então, se revela como uma força que luta contra a entropia, o mecanismo de feedback vital que permite ao sistema reconhecer: "Eu ainda sou eu?".
É por isso que sistemas vivos se autoproduzem, um processo que Maturana e Varela chamaram de Autopoiese. A incoerência, sob essa ótica, é como uma doença autoimune: partes do sistema atacam a própria estrutura que estaria ali para preservar.
O sistema, dessa maneira, não é uma "coisa"; é um "padrão". Prédios, pessoas e estratégias podem mudar, mas se o padrão de relações e valores se mantém, o sistema perdura.
Essa visão da Coerência como a força que preserva a identidade nos leva, então, a um paradoxo central da liderança moderna. Como manter esse centro em um mundo regido pela volatilidade? Como conciliar a permanência da identidade com a necessidade de adaptação?
A resposta está em entender a identidade não como um ponto fixo e rígido, mas como um Atrator. Na complexidade, o atrator delimita o comportamento de um sistema, mas não o governa. A organização pode nunca repetir o passado. Hábitos podem ser quebrados. O novo pode ser criado. Mas, quando coerente, ela orbitará sempre em torno de seus valores centrais.
Isso resolve o paradoxo do Navio de Teseu: trocamos quase todas as nossas células, mas continuamos sendo nós mesmos. O que permanece é o padrão organizador. A identidade, na complexidade, não impede a mudança; ela dá sentido à mudança, manifestando-se através da auto-semelhança dos fractais. A coerência garante que o todo esteja presente em cada parte. Assim, em uma organização coerente, a ação do CEO e a do estagiário podem ser drasticamente diferentes em escala, mas ambas carregarão a mesma "assinatura" cultural.
Essa compreensão da identidade como um atrator se manifesta de forma clara na estratégia, onde surge uma distinção fundamental entre dois modelos. O primeiro é o da empresa sem centro, que opera de fora para dentro, tornando-se um espelho passivo das tendências. O exemplo clássico é o Yahoo, que em sua busca por relevância, tentou ser um portal, um motor de busca, uma empresa de mídia e uma plataforma de conteúdo, reagindo a cada nova onda do mercado até que sua identidade se dissolveu completamente.
O segundo modelo é o da empresa coerente, que trabalha de dentro para fora. Ela não ignora o mercado, mas age a partir da clareza do seu próprio centro. A adaptação, aqui, não é submissão ao ambiente, mas a capacidade de interagir com ele a partir de seus próprios termos. É a troca da perseguição pela atração: enquanto a empresa reativa se esgota na captura de clientes, a empresa coerente confia que sua clareza os atrairá naturalmente.
Em um mundo saturado de ruído, a clareza de um sinal emitido por uma identidade íntegra é a única força capaz de verdadeiramente atravessar a volatilidade e gerar uma conexão real.